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Quando humanos ou fadas desejavam realizar algum tipo de magia que dependesse de um encantamento, como um exorcismo ou o lançamento de algum feitiço defensivo em suas casas, a atitude mais comum era procurar lojas de ocultismo capazes de lhes fornecer materiais e livros necessários para isso. Quando queriam realizar um ritual ilegal e profano aos olhos das autoridades ou divindades de qualquer lado do Véu, procuravam Thelema.

Thelema era a loja de ocultismo mais suspeita e recôndita de Linsel, e portanto, todos a conheciam. O empório ficava no porão de um antigo prédio de tijolos vermelhos no centro da cidade. Sua entrada escondia-se em um beco mal iluminado, cuja infâmia só era superada pela da própria loja.

Blitz desceu os degraus que levavam para a porta de madeira abaixo do nível da rua e entrou sem bater. Um velho sino enferrujado preso ao batente de madeira rachada tentou avisar de sua chegada, mas seu badalar foi fraco e fútil. Wulfric e Aura a seguiram, ambos em forma humana e ambos relutantes em entrar naquela loja, como o bom senso mandava.

O interior lembrava a morada do spriggan, se o Senhor da Floresta colecionasse os artefatos de propósitos mais questionáveis da cidade ao invés de bugigangas inofensivas. Livros de magia negra, cujo conteúdo faria um serial-killer empalidecer, dispunham-se pelas estantes da loja. Ossos e caveiras de humanos e fadas enfeitavam as mesas. Jarros cheios de líquidos repugnantes se equilibravam junto de pergaminhos e potes com restos mortais ou fetais de criaturas que Blitz sequer tentaria nomear. Um balcão de madeira escura dividia o fundo da loja com um quarto que servia de depósito para materiais ainda mais suspeitos. Chamas azuis e bruxuleantes equilibravam-se no topo de velas negras e proviam a sala com luz o suficiente apenas para se mover ali sem derrubar algo extremamente condenável e valioso.

Do outro lado do balcão uma pequena criatura contava distraída uma pilha obscena de moedas de prata. Blitz se perguntou como aquela coisa havia conseguido tanto dinheiro, mas a resposta dificilmente seria com a venda de um artefato simples e inofensivo.

O troll-anão era tão baixo quanto uma criança e precisava subir em um banco para ganhar altura o suficiente para encarar seus prováveis clientes do outro lado do balcão. Seu rosto era algo grotesco e assimétrico. Orelhas de tamanhos diferentes brotavam da lateral de sua cabeça deformada. Seu nariz, do tamanho e formato de uma batata, tinha uma coloração avermelhada, mas o resto de sua pele pintava-se de um verde-musgo doentio, recoberta por pelos esparsos e pústulas.

Ao notar seus visitantes, a criatura hedionda puxou sua pilha de moedas para uma gaveta do outro lado do balcão e resmungou em uma voz viscosa como lodo fétido:

– Ora, ora, ora… E eu aqui achando que meu dia só ia melhorar. Parece que eu estava errado. – Sorriu. – Como vai, Blitz? Ainda cumprimentando pessoas ao dar taquicardia pra elas?

– Talvez você queira conferir, Trag – Blitz estendeu a mão para a criatura.

Trag fitou a palma enluvada da garota e não fez mais que isso.

– Eu já tive uma dose dessa sua magia o suficiente para uma vida inteira, agradecido – o troll-anão disse e então sorriu com o canto da boca. – Além disso, eu não gosto da ideia de tocar em sua mão, com ou sem luva. Me dá nojo.

Blitz piscou. Depois concentrou-se em manter a calma e em controlar sua eletricidade, de modo que seu cabelo não se arrepiasse, revelando a fúria que borbulhava em seu interior.

A garota abriu um leve sorriso, que não tocou seus olhos, antes de dizer em sua típica voz baixa:

– Você tem um conceito de nojo bastante particular, Trag. Considerando que sua existência se resume a ser uma bolha de muco e asco.

– Bem, acredite em mim, Faísca. – o troll falou antes de escarrar uma bola de catarro verde e viscoso dentro de uma xícara quebrada qualquer. – O que faz uma pessoa repugnar é algo bastante relativo.

Blitz desviou o olhar com o estômago já embrulhado.

– Nós estamos procurando alguém – disse.

– Nós quem? Quem são eles? – Trag acenou para Wulfric e Aura. – E não me diga que são seus amigos. Você não tem amigos.

– Novo parceiro e uma cliente – Blitz disse, sem se abalar.

– Parceiro? – A criatura riu. – Pobre bastardo. Você deve ter a paciência de um elfo-ancião pra aguentar essa aqui, garoto.

Wulfric finalmente se pronunciou:

– Ela não é tão ruim assim.

Blitz virou o rosto e estreitou os olhos. O garoto encolheu e deu um leve passo para trás, mas ainda restou um leve sorriso em seus lábios.

– Sei… – Trag continuou. – Quem vocês procuram?

– O nome dele é Tortem–

– Torithen – Aura corrigiu.

– Tanto faz. – Blitz revirou os olhos. – Elfo da floresta. Manto e capuz. Babaca. Carregava isso. – A garota depositou no balcão um pedaço de tecido pardo com um baque surdo na madeira e o desenrolou para revelar o cristal partido.

Os olhos de Trag se arregalaram levemente, mas ele manteve a voz controlada:

– Eu nunca vi isso na minha vida.

Blitz sorriu.

– Agora eu sei que estamos no lugar certo. Foi você quem vendeu pra ele?

– Eu não sei do que você está falando.

A garota suspirou. Ela não queria chegar a esse ponto, mas com Trag, nunca havia outra opção. Ela cruzou os braços ao perguntar:

– Qual o seu preço?

– Não é uma questão de preço.

– Com você é sempre uma questão de preço.

O troll-anão massageou a ponte de seu nariz de batata antes de dizer:

– Olha só, Faísca, eu não posso sair vendendo informações sobre meus clientes pra primeira pirralha que me aparece aqui. Ainda mais sobre os que compram algo tão ilegal quanto isso. – Ele apontou para o cristal.

– Tudo aqui é ilegal, Trag. Eu aposto que você tem pergaminhos de magias proibidas de Nível 2 nesse seu quartinho dos fundos.

– Agora você está tentando me bajular, Blitz – O troll sorriu.

– Comece me dizendo o que é essa coisa e pra que ela serve. Finja que sou uma cliente em potencial.

– Meus clientes sempre sabem o que querem. Eu não preciso dar uma aula toda vez que vou vender meus produtos. – Trag pausou. – Mas você está certa, eu posso pelo menos te falar sobre o cristal… Pelo preço certo…

– Eu só quero saber o que é essa merda! Você vai me cobrar até por isso?!

– Informação é mercadoria, Blitz.

A garota balançou a cabeça, sorrindo com a situação.

– Você é um maldito mercenário, Trag.

– Mercenários morrem. Comerciantes ficam ricos.

– Você sabe que eu não gosto de usar meu dinheiro pra isso.

– E você sabe que eu não aceito somente dinheiro.

Blitz pensou no que poderia usar como moeda de troca.

– Nós caçamos um wendigo mês passado.

– Hmm… O que ele tinha possuído?

– Um cervo. Ainda temos as galhadas.

Trag coçou seu queixo pustulento, pensativo.

– Eu não sei… Eu acho que o pó delas pode servir de catalisador pra alguns feitiços, mas é difícil dizer.

Blitz cruzou os braços.

– É pegar ou largar.

– É, que seja. – Trag deu de ombros. – Esse tipo de cristal é chamado pelas fadas de koriandita. É geralmente encontrado nas montanhas ao norte de Nympharum, nas minas dos anões. Armazena mana e, com o círculo mágico correto, libera ela depois. É praticamente uma bateria de mana chique. Pode ser usado pra alimentar um feitiço que precisaria de mais de um feiticeiro pra ser lançado, ou por uma pessoa que tenha naturalmente pouca mana. É praticamente isso.

– Só isso? – Blitz franziu a testa. – E como é que eu só ouvi falar disso agora?

– Como eu te disse antes, essa coisa é bastante ilegal e muito difícil de se conseguir. Sem falar que é cara demais pro seu bolso. Além disso, a Guarda Real de Nympharum luta há anos pra tornar o conhecimento sobre isso algo incomum.

– Por quê?

– Eu duvido que vocês tenham encontrado isso em circunstâncias normais… Alguém morreu, não é?

Todos ali, com exceção do troll-anão, se entreolharam.

– Talvez – Blitz respondeu, hesitante. – O que uma coisa tem a ver com a outra?

– Uma bateria precisa de carga. Advinha como essa aqui é recarregada…

A imagem de uma dúzia de dríades apunhaladas no peito surgiu em sua mente como uma pintura.

– Merda…

– E é por isso que essa coisa é ilegal. Precisa de mana? É só apunhalar seu vizinho com um cristal desses e voilà! – Trag riu e logo acrescentou: – Bem, vizinhos, provavelmente. Plural. Dificilmente uma criatura, inofensiva o bastante pra ser usada como bateria, seria capaz de encher um cristal de koriandita sozinha.

– Isso explica algumas coisas – Blitz comentou, depois lembrou-se do freixo caído no chão da clareira. – Esse daqui foi encontrado já quebrado perto de uma árvore pela metade e uma cratera. Quão instável é essa coisa?

– Bem, se você quebrá-lo, bastante instável com certeza. Se ele estiver cheio de mana, é praticamente um explosivo em suas mãos. A explosão consome quase qualquer coisa em uma esfera de pura mana. O cristal sobrevive, e geralmente alguns tipos de metal também, ou obsidiana, mas não muita coisa além disso. Quebrá-lo ou tentar forçar mais mana de qualquer natureza nele pode ser o estopim.

– Vou me lembrar de não eletrizar um desses de agora em diante – a garota murmurou para si. – E como foi que você conseguiu esses cristais?

Trag deu de ombros.

– Talvez eu conheça um ou dois anões em Nympharum.

– Hmm… Bem, se isso é tão difícil de se achar, você não deve ter muita concorrência em Linsel. – A jovem deslizou o dedo sobre o cristal, fingindo-se distraída, enquanto esperava a criatura morder a isca.

– Há! Eu sou o único com esse produto em Linsel, Faísca. Se quiser koriandita no futuro, vai ter de vir até o grande Trag aqui.

– Ora, é mesmo? – Blitz deixou um leve sorriso escapulir do canto de seus lábios.

– Ah, merda… – Trag percebeu seu erro.

– Quer dizer que se um elfo da floresta quisesse comprar koriandita, você seria o único capaz de vendê-la?

– Eu… Er… Hmm… E-Ele provavelmente comprou esse em Nympharum.

– Nós temos absoluta certeza que Toritan sequer chegou perto do Véu. – Aquilo não era bem verdade, mas Trag não precisava saber disso. – E se ele o tivesse atravessado, o que ele ia fazer? Você mesmo disse que a fiscalização do outro lado é bem pesada. Enquanto aqui ela parece ser… inexistente.

– Ah, caralho… Tá bom! Talvez esse seu elfo tenha vindo aqui e talvez eu tenha vendido alguns cristais pra ele. Isso não muda o fato de que eu não vou revelar nada sobre o cara pra você, Faísca.

– Qual é o seu preço?

– Não é uma questão de preço e eu já te disse isso! Se eu ficasse revelando informações sobre meus clientes pra todo mundo que me pede, eu já estaria morto. Ou ainda pior, estaria sem minha loja.

Blitz desdenhou das palavras de Trag no início, mas parou para pensar melhor.

Havia uma razão para que a garota não espirrasse toda vez que entrava ali. A loja era mantida imaculada. É claro que a desorganização dos produtos era algo mais que óbvio e a jovem acreditava que o troll não mantinha controle de seu estoque ou tinha sequer um índice que contabilizasse seus livros, mas ela tinha de admitir que o lugar era limpo com frequência. Mais que isso, Blitz acreditava que ali existia uma bagunça organizada e que Trag podia trazer ordem àquele caos sempre que buscasse por um produto. Aquela loja era seu mundo.

A garota suspirou.

– Eu acredito em você, Trag, mas eu também acredito que você tenha um preço. Meu cliente é o Senhor da Floresta do Bosque na fronteira leste da cidade. Eu tenho certeza que vocês podem fazer um acordo.

– E o que é que eu ia ganhar com isso, Blitz? Você acha que meus clientes vêm aqui procurando magia da floresta? Hmm? Eles não querem plantar árvores ou falar com passarinhos. Desista.

Blitz hesitou por um segundo antes de mudar de estratégia. A garota colocou as duas mãos sobre o balcão e se aproximou do troll-anão o suficiente para sentir o cheiro pútrido de sua pele.

– Talvez eu devesse te obrigar a falar, Trag – ela disse e invocou mana o suficiente para arrepiar seus cabelos curtos.

Trag não se abalou, pelo contrário, sorriu ao se aproximar ainda mais.

– Boa tentativa, Faísca, mas tem dois motivos pra essas suas ameaças não funcionarem comigo. Primeiro: eu sou o único que tem a informação que você precisa e por isso você não pode me matar…

– Eu não estava pensando em te matar rapidamente…

– E segundo: você pode ser fria, mas você está mais pra um cubo de gelo do que uma geleira. Você não consegue me matar sem ser provocada, nem me torturar. Você não tem bolas pra isso, em mais de um sentido. – Trag sorriu.

Blitz teve de se esforçar para manter uma expressão passiva ao invés de mostrar a irritação que sentia. A criatura estava certa mais uma vez. Se Trag fosse idiota o suficiente para atacá-los, ela o transformaria em uma bolha verde carbonizada sem pensar duas vezes e sua única reação seria torcer o nariz para o cheiro resultante. Mas matá-lo ou torturá-lo a sangue-frio… Mesmo ela era incapaz disso.

– Talvez eu devesse te atingir onde mais dói, então… – ela fingiu indiferença. – Talvez eu devesse colocar fogo nessa pocilga que você chama de loja e assistir o prédio virar cinzas…

Trag sequer piscou.

– Nisso eu poderia acreditar, Faísca, já que não seria sua primeira vez…

As palavras do troll-anão atingiram a garota como um coice. Ela pôde sentir seu sorriso desaparecer e seu rosto queimar. Seus cabelos se arrepiaram e arcos voltaicos estalaram com o surto inconsciente de energia que percorreu seu corpo. Blitz socou o balcão com força o suficiente para sentir dor em seu punho.

– Vá se foder, Trag! – a jovem gritou e deu meia volta, caminhando a passos pesados para a saída.

– Blitz… – Wulfric começou a falar.

– Não vamos conseguir nada aqui – ela disse, abrindo a porta num rompante quase forte o bastante para arrancar o sino enferrujado do batente de madeira. – Vamos!

O garoto a seguiu, mas Aura continuou ali.

– Passarinho – Blitz chamou. – Vamos.

A animorfa a encarou e depois caminhou para a parte mais afastada da loja, longe da porta de saída e do balcão dos fundos.

– Que porra você tá fazendo?! – A jovem a seguiu.

Aura se virou para Wulfric e Blitz e sussurrou em seu sotaque de fada:

– O troll dizer achar que o dia melhorar.

Blitz franziu o cenho e então balançou a cabeça para se certificar de que não estava tendo um derrame.

– O quê? – Ela não fez questão de sussurrar. – Que merda você tá falando?

Aura a encarou.

– Você ter muita raiva. Não pensar direito. Primeiro, acalmar.

Um sorriso incrédulo surgiu nos lábios da garota ao se deparar com a audácia da elfa. Ela abriu a boca para retrucar quando Aura lhe fuzilou com aqueles seus olhos castanhos penetrantes.

– Tch – Blitz estalou a língua e cedeu. Respirou fundo algumas vezes até sentir seus cabelos se assentarem novamente. A dose extra de oxigênio ajudou a clarear sua mente, mas ela ainda estava irritada. – Pronto. Calma como as águas de um lago num dia sem vento. Agora explique-se.

Wulfric interveio, falando em voz baixa:

– Eu acho que ela está dizendo que quando chegamos, Trag disse que achava que seu dia só fosse melhorar. – Ele olhou para Aura. – Certo?

A elfa assentiu, mas Blitz ainda estava confusa.

– Trag só faltou admitir ter vendido o cristal para Tariton e aparentemente essas coisas são caras. O dia foi lucrativo. O que isso tem a ver?

– Eu não achar ser isso só – a animorfa disse.

Blitz suspirou.

– Não dá pra você se transformar em um passarinho pra poder falar com a gente como uma pessoa de verdade?

Aura não pareceu notar a ironia naquelas palavras, mas pela expressão de Wulfric, o cérebro do garoto travou por um segundo.

– Net – a elfa respondeu. – Quando eu ser andorinha… – Ela pareceu procurar pelas palavras certas. – Eu não conseguir… falar… baixinho? – Aura perguntou, inclinando a cabeça de uma forma que Blitz iria preferir cortar os pulsos a admitir ser adorável.

– Eu acho que ela não consegue sussurrar telepaticamente – Wulfric esclareceu.

– Eu entendi isso. – Blitz pensou em sair da loja para poderem conversar, mas resolveu acabar com aquilo o mais rápido possível. – Continue.

– Quando nós chegar, o troll estar a contar moedas. Eu achar que ele ganhar muito hoje.

– E?

– Nós da floresta não ter moeda, como garota pequena notar. E troll não gostar da nossa magia para trocar.

– E?

– Como Torithen pagar cristais?

Blitz franziu o cenho. Aquela era uma boa pergunta. Uma que não havia passado pela sua cabeça.

– Talvez ele tenha conseguido dinheiro humano ou faerie de alguma forma – Wulfric teorizou.

– Sig, mas haver forma mais fácil. Forma que garota pequena descobrir hoje na morada de meu mestre.

A imagem de pequenas pepitas douradas forrando o fundo de um pequeno baú de madeira veio à mente de Blitz ao soar da última sílaba dita por Aura. E o entendimento veio logo em seguida.

Não seria difícil Torithen roubar um pouco do ouro-de-fada de seu mestre ou mesmo de talvez ter seu próprio baú do tesouro por qualquer motivo que fosse. Era um tiro no escuro, mas levando em conta o isolamento do Povo da Floresta podia ser uma explicação mais plausível do que o elfo arrumar dinheiro de verdade.

As palavras de Trag e a quantidade de moedas de prata que a criatura contava corroborava com a ideia de que o ouro-de-fada trazia mais riquezas ao seu portador. O que significava que a desvantagem de possuir tal ouro também deveria ser real. Pelo que Blitz entendera, Torithen poderia muito bem aparecer ali e exigir algo em troca de todo o dinheiro extra que Trag ganhara. Podia ser um feitiço, uma poção, sua servidão ou toda a loja.

Era difícil acreditar que Trag, que vivia de vender feitiços e objetos amaldiçoados, pudesse cair num truque barato como aquele, mas Blitz o conhecia o suficiente para saber que o pequeno troll ficava cego diante do dinheiro.

Blitz sorriu ao fitar Aura.

– Sabe de uma coisa? Você não é tão inútil quanto eu pensei, passarinho.

– Eu agradecer – a elfa replicou honestamente e a garota se perguntou se fadas compreendiam o conceito de sarcasmo.

Blitz dirigiu-se novamente para o balcão, passando por um Wulfric confuso no caminho.

– Trag, eu tenho algo para dar em troca da informação que queremos – ela disse, confiante.

O troll-anão, que voltara a contar as moedas escondidas em sua gaveta, olhou para cima, descrente.

– E o que seria isso?

– Informação.

– Olha, Blitz, eu vendo informações, mas não tenho motivos para comprá-las. Então, eu duvido–

– Essa envolve você – A garota pausou dramaticamente. – E a sua loja.

As sobrancelhas espessas como taturanas de Trag se arquearam.

– Como assim?

– Vamos dizer que eu sei de algo que futuramente pode levar sua loja a falência. Quanto isso vale pra você?

Trag bufou.

– Você está blefando.

– O elfo esteve aqui? – a garota perguntou, já estipulando seu preço.

– Eu não acredito em você.

– O que ele comprou? Ele te disse o que pretendia fazer?

– Desista, eu não vou falar nada.

– Bem, fazer o que… – Blitz deu de ombros. – Boa sorte reconstruindo seu império do nada.

Ela se virou e pode ver o exato momento em que a face de Wulfric se acendeu, atingida pelo entendimento.

– Por Neliel! O dinheiro que ele estava contando… E Torithen… Ele usou our–

– Wulfric! – a garota o interrompeu antes que o jovem estragasse seu plano.

– O que você ia dizer?! – Trag perguntou para Wulfric e Blitz pôde ouvir uma leve nota de desespero em sua voz. – Do que você está falando?!

– Nada que te interessa se você não está disposto a pagar. – Ela deu meia volta.

– Mas Blitz – Wulfric sussurrou, mas podia muito bem estar gritando naquele pequeno espaço. – Ele realmente pode se dar mal.

O rosto de Trag ficou lívido e Blitz agradeceu por Wulfric ser o garoto ingênuo e bondoso que era. Ela não conseguiria fingir tal preocupação com aquele monte de carne esverdeada que começava a suar atrás do balcão.

A garota abriu a porta da frente, dessa vez com calma e precisão, e colocou o pé para fora.

– Espere! – Trag gritou. – Você… Vocês estão falando sério mesmo.

Blitz apenas o encarou e assentiu uma vez.

– Muito bem – o troll concordou ainda hesitante. – Você fala primeiro.

– Em seus sonhos, Trag.

– Eu tenho certeza que sou o mais confiável entre nós dois, Blitz.

– Talvez… Mas você vai ter que pagar pra ver. – E quando o troll hesitou, ela virou-se para a saída. – Passar bem.

– Tá bom! Tá bom! Eu falo primeiro! Mas é melhor isso valer a pena, Faísca.

– Então desembucha.

Trag suspirou.

– O elfo apareceu aqui pela primeira vez anteontem.

– Primeira vez? Ele veio mais de uma?

– Você vai ficar sabendo se me deixar contar, não acha?

Blitz cruzou os braços e esperou, o pé batendo incessantemente no piso de pedra.

– Ele não disse o nome dele e eu também não perguntei, mas é como você disse. Elfo da floresta. Manto e capuz. Um babaca. Chegou com o nariz empinado, olhando com desdém pra cada parte da minha loja. Eu odiei ele logo de início.

“Ele então disse que queria um feitiço para invocar uma criatura que pudesse destruir uma floresta inteira com facilidade. Eu mostrei pra ele um pergaminho de invocação de um slime venenoso e–

– Besteira – Blitz interveio.

– O quê?

– Invocações são impossíveis de serem feitas em Linsel. Não dá pra abrir um portal pra outra dimensão deste lado do Véu e você sabe disso. É como abrir uma porta que já está aberta.

– Essa é uma péssima analogia, Faísca.

– Não é minha analogia. E eu quero ver o pergaminho que você vendeu pra ele. Ou algo parecido.

Trag hesitou, mas caminhou para a sala dos fundos de sua loja, resmungando algo para si. Voltou de lá com um rolo de papiro nas mãos e o entregou para a garota.

Blitz o desenrolou, tomando cuidado para não danificar algo que não podia pagar. Como de costume, uma folha de papel avulsa, e mais nova que o pergaminho, havia sido enrolada junto dele. Esta traduzia o conteúdo do feitiço para a língua comum, indicando: seu nome, se existisse um; sua funcionalidade; os ingredientes necessários para realizá-lo e a pronúncia fonética do encantamento que o ativaria.

Aquele ali em questão não tinha nome, mas sua funcionalidade lia-se: invoca um slime venenoso sem contrato com o conjurador. Os ingredientes eram bastante simples: areia para desenhar um círculo mágico, pedras para delimitar onde a mana deveria se concentrar e uma fonte de mana, seja a do próprio conjurador ou de um sacrifício.

A garota analisou o pergaminho desta vez, demorando-se no círculo mágico desenhado com algum fluído da criatura a ser conjurada, geralmente sangue, mas nesse caso: visco. O desenho era simples: uma circunferência perfeita com uma estrela de cinco pontas circunscrita em seu interior. Entretanto, as formas não eram desenhadas por linhas sólidas comuns, mas sim com palavras do próprio encantamento. Isso tudo seria normal para um pergaminho de invocação, como o Trag dizia possuir, não fosse por um pequeno detalhe que fazia toda a diferença: uma outra circunferência, desta vez desenhada com uma linha sólida de tinta negra imbuída em mana, englobava o círculo mágico. A simples forma servia para somente uma coisa: impedir que algo saísse dali.

Blitz levantou os olhos do papiro e encarou o troll-anão com expressão séria.

– Isso é uma Prisão de Papel. É uma magia proibida de Nível 3, Trag.

A criatura deu de ombros.

– Como você pode ver, não é de Nível 2 como você tinha dito. É tecnicamente menos ilegal.

– Claro… – ela comentou, sem ânimo para discussões.

Uma Prisão de Papel era um conceito bastante simples. Um círculo mágico com um encantamento inverso daquele que a garota segurava era desenhado em uma superfície. Uma criatura era posta sobre ele e então invocada para dentro do desenho que seria circunscrito em uma circunferência que a impediria de fugir. Era algo desumano, se é que o termo se encaixava para as fadas. E muito perigoso. A falta de contrato indicava que a criatura libertada dali não era obrigada a obedecer ao conjurador.

Trag continuou como se o pergaminho não fosse nada demais:

– Bem, eu vendi pra ele todos os ingredientes, inclusive cinco cristais que seriam necessários e uma poção de arruda-selvagem e ele se foi.

– Arruda-selvagem?

– Serve pra disfarçar seu cheiro por um tempo. É útil pra se esconder ou fugir de criaturas com um bom faro.

Blitz trocou olhares com Wulfric, a compreensão pairando entre os dois. Depois continuou:

– Você disse que essa foi a primeira vez que viu ele. E quanto à segunda?

Trag hesitou.

– Hoje…

– Hoje?! – Blitz e Wulfric exclamaram em uníssono.

– Ele voltou dizendo que tinha perdido um dos cristais e perguntou se o feitiço seria possível com só quatro. Eu disse que só se ele provesse a mana restante por conta própria, mas que do contrário ela iria falhar. Eu ofereci vender outro cristal, mas ele disse não ter mais ouro.

A última palavra não passou despercebida por Blitz, mas ela não demonstrou reação alguma.

– Então eu ofereci trocar o pergaminho por outra invocação–

– Prisão – a garota corrigiu.

– Tanto faz. – Trag revirou os grandes olhos. – Eu ofereci trocar o pergaminho por outro do mesmo nível, mas que usasse menos mana. Eu só tinha um com esses requisitos e foi esse que ele levou. E antes que você me pergunte, eu não tenho outro do mesmo tipo pra te mostrar, mas sei o que ele invocava… Ah, que seja! O que ele prendia. O pergaminho contém uma lâmia, uma criatura metade elfa, metade serpente, originária do Reino de Naga. Provavelmente uma prisioneira da guerra contra os anões de séculos atrás. É tudo que sei.

Blitz virou-se para Aura e Wulfric.

– A morte das dríades não foi a vingança desse Tariten. Ele só precisava de alvos fáceis para recarregar os cristais. Acho que ele pretende destruir o bosque do velhote, ou talvez dominar ele.

Wulfric concordou com um aceno de cabeça e Aura pareceu ansiosa com a teoria.

Blitz voltou-se para Trag.

– Há quanto tempo ele saiu daqui?

O troll-anão abriu a boca e logo a fechou novamente, deixando Blitz sem resposta.

– Trag? – ela insistiu.

A criatura engoliu a saliva antes de gaguejar:

– Huh… Ah… H-Há… Uns quarenta minutos, mais ou menos…

Blitz arregalou os olhos. Há quanto tempo eles estavam ali? Meia hora? Menos talvez? Eles o haviam perdido por uma questão de minutos.

– Trag, seu filho da puta!

– Não venha colocar a culpa em mim! Eu nem pretendia contar isso pra vocês!

– Merda…

Wulfric se adiantou.

– Nós temos que avisar o spriggan!

– Isso se já não for tarde demais.

Todos os três deram meia volta e correram para a saída.

– Blitz! – Trag gritou. – Você ainda não cumpriu sua parte do acordo!

A garota estacou ali mesmo, já fora da loja. Reservou dois segundos de seu curto tempo para pensar se deveria mesmo cumprir sua parte. A ideia de apenas largar a criatura ali com as mãos abanando lhe apetecia como uma forma de vingança barata, mas ela decidiu por não fazê-lo. Trag podia ser um babaca, mas era um babaca útil e não seria uma boa ideia entrar em sua lista-negra.

Blitz agarrou a porta de madeira e começou a fechá-la lentamente, parando no último instante. Ela observou o troll-anão pela fresta estreita e contentou-se em ver sua expressão receosa.

– O ouro com que o elfo te pagou… – Ela fez uma pausa dramática. – É ouro-de-fada.

Trag arregalou seus já enormes olhos e olhou para baixo, para a gaveta que continha sua pequena fortuna prateada.

– Filho de uma p–

Blitz fechou a porta com um baque satisfatório, interrompendo a maldição do troll-anão.

Depois pôs-se a correr.


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