6

O cheiro do interior da choupana do spriggan voltou a incomodar o nariz de Blitz. Ela o coçou, segurando a vontade de espirrar mais uma vez, enquanto olhava ao redor, escaneando o local por algo que lhe parecesse útil.

Wulfric fez questão de não surpreendê-la ao procurar um livro que lhe interessasse no meio das dezenas de volumes espalhados pela morada. Ele retirava uma cópia da estante, soprava o pó da capa, a folheava e logo em seguida a devolvia ao seu devido lugar, ostentando inconscientemente sua habilidade inata de permanecer em meio à poeira sem ser sufocado pelo seu próprio nariz.

Blitz já havia espirrado seis vezes desde que ele começara com aquilo e agora ela tentava evitar uma sétima.

– Achim! – Ela falhou.

Ninguém ali proferiu um “Saúde” ou um “Que a Mãe-Terra lhe abençoe”. Eles haviam desistido lá pelo terceiro espirro e se acostumado com os estalos elétricos pelo quinto.

– Qualquer coisa? – Wulfric perguntou ao pegar outro livro. – Tem certeza?

– Qualquer coisa que vocês achem justo ter como pagamento – o spriggan respondeu. – Mas só um objeto e não mais que um.

Blitz interveio, coçando o nariz:

– Nosso chefe também precisa ser pago.

– Ah, sim. O senhor Zephir, não é mesmo? Não se preocupe, pequena, o pagamento de seu chefe já foi combinado quando Aura apresentou este caso a ele.

Aquilo pegou Blitz de surpresa. Ela se perguntou se Zephir já imaginava que aceitariam o caso a ponto de combinar um preço ou se ele havia sido apenas otimista. Também imaginou a conversa entre ele e Aura. Será que ela havia contado tudo através de meias palavras com aquele seu sotaque pesado ou Zephir conhecia a linguagem das fadas? De um jeito ou de outro, nenhuma das opções a surpreenderia.

O spriggan pegou um livro do topo de uma pilha afastada e lhes mostrou.

– Este é o pagamento dele. – Aquilo também não a surpreendeu. – Uma escolha um tanto peculiar, eu diria. Um livro de histórias sobre o Véu. Em Kalinae, a existência de Linsel não é de conhecimento comum para todos, assim como deve ser também em Hominum. Muitos a conhecem somente por lendas e histórias contadas para crianças. Este volume compila várias delas. – Ele coçou o queixo coberto por sua barba musgosa. – É estranho que ele se interesse por isso…

– Ninguém sabe o que se passa na cabeça de Zephir – Blitz citou um dos primeiros pensamentos que teve quando conheceu o homem.

– Um homem misterioso, eu vejo. – O spriggan pareceu se divertir com aquilo. – Ora, mas vamos logo, pequena! O que você deseja daqui?

Blitz voltou a olhar ao seu redor, para os montes de livros, potes, ervas e quinquilharias espalhadas pelo chão, parede e teto da morada do spriggan.

Um pequeno baú de madeira, depositado sobre uma mesa e escondido por papéis amarelados e sombras, lhe chamou a atenção. De primeiro, pensou ter encontrado uma antiga caixinha de música, mas, ao abri-lo, o brilho dourado que refletiu em seus olhos escuros lhe disse o contrário. Dezenas de pepitas de ouro do tamanho de cerejas e tão irregulares quanto pedregulhos cobriam o fundo da pequena caixa.

Blitz arregalou os olhos e um sorriso ganancioso veio de encontro aos seus lábios.

– Acho que já encontrei algo que me agrada – ela disse, mostrando o baú em suas mãos.

Wulfric fitou aquilo curioso, mas o spriggan pareceu perder a cor de sua casca ao ver o que a garota segurava.

– Ah! Pequena! Por favor, eu desaconselho você a escolher isso!

Blitz franziu o cenho ao mesmo tempo que estreitava os olhos.

– Por quê? Você disse qualquer coisa.

– Bem… Sim, mas… – O spriggan suspirou. – Eu não posso lhe impedir de escolher este presente, mas minha honra me obriga a lhe dizer que isso não é simplesmente ouro, como você deve pensar. É p’yrita.

– Blitz! – Wulfric praticamente gritou. – Não toque nisso! É ouro-de-fada!

A garota ergueu as sobrancelhas e encarou as pepitas mais uma vez, ligeiramente mais cautelosa depois da reação do garoto.

– E que raios é ouro-de-fada? É amaldiçoado?

O rapaz pareceu escolher as palavras certas antes de dizer:

– Mais ou menos… É difícil de explicar. Qualquer um que é pago com ouro de fada é agraciado com grande fortuna. O ouro atrai mais riquezas enquanto fica em posse da pessoa.

Blitz piscou duas vezes.

– Engraçado… Eu pensei que você estivesse tentando me convencer a não aceitar o ouro, porque realmente não parece. – Ela aproximou a mão enluvada das pepitas, desafiadora.

– Olha só – Wulfric acrescentou com pressa –, vamos supor que você receba três pepitas de ouro-de-fada como pagamento por um trabalho feito para um faerie. Esse faerie só desejava pagar o equivalente ao trabalho feito e julgou que três pepitas fossem o suficiente. Nada mais, nada menos. Mas depois, por você estar de posse do ouro, mais riquezas começam a surgir na forma de outras coisas. Um cliente disposto a pagar mais que o normal ou uma moeda de ouro verdadeira achada na rua, esse tipo de coisa. Você vai estar recebendo, mesmo que indiretamente, mais do que o faerie estava disposto a te pagar.

– É sério, Wulfric, você está fazendo um péssimo trabalho se quer realmente me convencer a não ficar com o ouro. – Ela aproximou ainda mais sua mão do brilho dourado.

O spriggan falou em um tom calmo e gentil:

– Responda-me uma coisa, pequena: você realmente deseja possuir uma dívida com um kalini?

A mão de Blitz, que se movia para finalmente tocar a superfície áspera e dourada das pepitas, estacou.

Havia poucas coisas no mundo mais ousadas ou estúpidas do que ficar em débito com uma fada. As leis de Nympharum priorizavam a ordem e a justiça como quaisquer outras, mas essas palavras eram bastante relativas em um reino de elfos e monstros. Para eles, um contrato verbal tinha tanto poder quanto um que fosse talhado em pedra. Voltar atrás em sua palavra no reino das fadas era considerado, não somente rude, mas um crime punível com as mais variadas sortes de castigo, seja físico, psicológico ou econômico. E não era necessário sequer provar a existência de tal acordo, pois o pagamento era compulsório.

Havia magia em Nympharum. Magia diferente do que os humanos, mesmo os de Linsel, conheciam. Magia que banhava os corpos de cada fada ainda viva e que não podia ser domada ou controlada. Magia antiga e perigosa.

Por isso Blitz hesitou. Porque se ela aceitasse o ouro do spriggan e logo depois realmente recebesse mais riquezas do que deveria, essa dívida indireta com a fada poderia ser cobrada a qualquer momento, não importando quão ilógico isso pareceria no mundo humano. O velhote não parecia o tipo de fada que faria isso com alguém, mas ela não podia confiar cegamente em qualquer que tivesse uma expressão gentil no rosto. Pelo que ela bem entendia, o spriggan ou uma fada ligada de outra forma àquele ouro, podia muito bem bater na sua porta no próximo dia exigindo sua mão em casamento ou um primogênito que ela não tinha, ou sequer desejava ter. E ela não poderia fazer nada para detê-lo, compelida a cumprir um contrato por meio de forças que nem ela, nem ninguém compreendia.

Blitz suspirou, fechando o pequeno baú em suas mãos e privando seus olhos da cor dourada em seu interior.

Wulfric suspirou, parecendo mais tranquilo, e voltou a folhear alguns livros.

– Eu tenho que dizer que sua coleção é incrível – ele comentou com o spriggan.

– Fico grato por isso, meu jovem. É sempre bom ver pessoas se interessando pelo saber, ainda mais um jovem como você. Conhecimento é algo inestimável. – Uma pequena pausa. – Quais são seus interesses, meu jovem? Política? Filosofia? Eu tenho ótimos livros sobre botânica também, tanto de Hominum quanto de Kalinae.

– Eu aposto que iria gostar desses, mas eu estava procurando algo mais útil para meu trabalho.

– Hmm… – O spriggan coçou o musgo de sua barba. – Acho que tenho algo perfeito.

O Senhor da Floresta virou-se, arrebentando as raízes que já se formavam sob seus pés, e pôs-se a revirar uma pilha de livros, levantando-se de vez em quando para estalar os galhos de suas costas cansadas.

– Aqui está! – ele exclamou ao levantar um grosso volume de capa de couro e folhas amareladas. – O Bestiário de Blackwood, escrito pelo renomado professor, Henrico Blackwood.

– Blackwood? – Wulfric indagou ao pegar o livro e quase deixá-lo cair, provavelmente por causa do peso inesperado. – Esse nome não é faerie, ou é?

–  Não, não, meu jovem. Henrico era um humano. Um dos poucos a conseguir viajar para Kalinae através de um portal em Hominum.

– Eu não sabia que isso era possível.

– A abertura espontânea de um portal é muito rara, mas bastante possível. Normalmente humanos só chegam à Kalinae quando por meio da mão de um kalini, seja porque desejam seus serviços como escravo ou porque desejam comê-lo. – O spriggan pareceu alienado à expressão assustada do garoto e apenas continuou: – Blackwood caiu em um portal e teve a sorte de encontrar altos-elfos do outro lado ao invés de homens-lagartos famintos. Ele conta isso e mais no prefácio deste livro. Vale a pena ler com atenção, pois seu humor é bastante criativo. Pelo que sei, ele nunca tentou voltar para Hominus. Achar um portal de volta não seria nada simples, mas os feiticeiros dos altos-elfos provavelmente poderiam ter aberto um sem muita dificuldade. Ele morreu com noventa anos apenas, praticamente uma criança, mas antes tratou de escrever este livro na língua comum, para que seus compatriotas pudessem ter conhecimentos acessíveis sobre os habitantes de Kalinae. Sua escrita, preocupação com detalhes, ilustrações e, principalmente, sua imparcialidade, fez com que muitos estudiosos kalinis considerassem este livro, com certa má-vontade devo dizer, como um dos melhores bestiários já escritos.

Os olhos de Wulfric brilharam com as últimas palavras do spriggan, mas ele hesitou ao começar a folheá-lo.

– Eu… Eu não sei se posso aceitá-lo. Parece valioso demais…

– O conhecimento realmente é, mas o receptáculo é apenas papel e couro. Não passa de uma cópia. Eu tenho certeza que posso conseguir outra, portanto, não se acanhe, meu jovem.

– Tá bem. Então eu vou ficar com ele – Wulfric disse, mal conseguindo conter um enorme sorriso.

O spriggan devolveu o sorriso e então voltou-se para Blitz:

– E quanto a você, pequena?

Blitz piscou ao ouvir a pergunta e colocou-se a escanear a sala mais uma vez, mas, como antes, nada lhe chamava a atenção.

Ela ficaria satisfeita se o sentimento fosse algo passageiro, mas estava bem longe disso. A garota sentia-se assim desde que fugira do orfanato em chamas. Não sentia interesse por nada. Mesmo o dinheiro que recebia não lhe era tão importante quanto fazia parecer. O que lhe era realmente valioso era a independência que tinha ao recebê-lo. Podia pagar suas próprias contas e comprar as poucas coisas que ainda lhe traziam um pouco de prazer, como vinis, livros e boas refeições. Não precisava depender ou confiar em ninguém.

Blitz só se sentia viva novamente quando lutava, quando sua mente estava em branco e a única coisa que importava era seu coração acelerado e a eletricidade correndo por suas veias.

A jovem sentiu-se um pouco desanimada com aqueles pensamentos e, para piorar, não parecia haver nada pendurado naquelas paredes limosas ou jogado no chão empoeirado que lhe pudesse agradar.

O Apanhador de Sonhos chamou atenção de seus olhos mesmo estando escondido em um canto escuro da sala. O artefato era simples e parecia bem antigo. O círculo de madeira que compunha seu corpo era irregular e rústico. As linhas quase transparentes que o cruzavam, formavam o padrão de uma teia de aranhas assimétrica. De sua base se penduravam mais três linhas, a do meio mais longa que as outras duas, e de suas pontas, penas compridas e largas como lâminas brilhavam com uma iridescência quase sobrenatural.

– Aquilo é de verdade? – Blitz apontou para o apanhador. – Ou é só um enfeite?

O spriggan girou lentamente seu pescoço e fitou o objeto na parede.

– Ah, pequena, não é um mero enfeite. É algo bastante real. O aro é feito dos finos galhos trançados de uma espécie de teixo-selvagem de Kalinae, extremamente resistente e repleta de mana. A renda é teia de aranha de verdade, uma espécie com uma seda particularmente forte e com a fama de não deixar nada escapar. E as penas são de uma ave kalini, cujo nome pode ser traduzido como Não-Memória, capaz de causar amnésia temporária naqueles que ousam contemplar suas cores vibrantes. Juntos podem apanhar qualquer sonho que venha em sua direção.

Chamas, quentes, brilhantes e selvagens incendiaram as memórias da garota, trazendo junto os gritos que a acordavam quase toda manhã.

– Pesadelos também? – ela perguntou sem tirar os olhos do apanhador.

– Sim, é claro.

– Eu vou querer ele. – Sua voz soou mais animada do que gostaria.

Wulfric se aproximou timidamente.

– Blitz, você–

– Eu não preciso disso – ela mentiu. – Só achei bonito.

– Certo…

– Pequena – o spriggan começou a dizer –, eu tenho que lhe dizer que esse objeto é chamado de Apanhador de Sonhos por um motivo. Ele apanha todos os tipos de sonhos. Pesadelos com certeza, mas sonhos bons também. Se você pendurá-lo em sua cabeceira, não haverá nada além de vazio durante seu sono.

Blitz cogitou aquilo por um segundo. A inexistência de luz e som em seus sonhos lhe parecia uma opção melhor do que os gritos e as labaredas que assombravam suas noites.

– Esse é meu preço – ela disse resoluta.

O spriggan pareceu se entristecer, mas assentiu.

– Então ele é seu.

– Ótimo. Recebemos depois de completarmos o trabalho. – A garota fez um sinal para que Wulfric devolvesse o livro e ele o fez, embora hesitante.

– Por onde começamos? – ele perguntou.

– Você tem certeza que não consegue encontrar o rastro de Torithen de novo?

– Eu realmente duvido.

Blitz suspirou. Aquilo deixava as coisas bem mais complicadas.

– Então o cristal quebrado é nossa única pista.

– Você acha que Zephir sabe o que é esse cristal?

– Não duvido, mas também não pretendo perguntar.

O garoto pareceu confuso.

– Por que não?

– Porque não gosto de depender dele mais do que já preciso. E além disso, ele provavelmente nos mandaria para o mesmo lugar pelo qual vamos começar.

– Que seria?

– O mercado negro de Linsel. Se o elfo não fugiu para Nympharum, nem achou o cristal aqui, é provável que ele o tenha conseguido na cidade. E esse tipo de magia me parece perigosa demais para ser vendida em qualquer loja de ocultismo.

– Faz sentido. – Wulfric coçou o queixo ao concordar.

– Estamos indo – a garota disse para o spriggan e seguiu para a saída.

– Esperem um minuto, por favor – o Senhor da Floresta pediu e dirigiu-se à Aura. – Vá com eles, querida.

Blitz interveio no mesmo instante.

– Nós não precisamos de alguém nos vigiando, velhote.

– Ah, não, pequena. Eu só acho que Aura pode ser útil a vocês. Ela é bastante esperta e é também uma excelente boticária.

– Não acho que vamos precisar de perfumes ou sais de banho durante o trabalho.

– Por favor, pequena.

Wulfric se aproximou.

– Blitz, qual é…

A garota massageou as têmporas, irritada.

– Se isso fizer vocês calarem a boca… Mas é melhor ela não nos atrasar.


Deixe um comentário