6

Blitz não sabia quanto tempo se passara quando deu por si. Sentia uma leve dor de cabeça e uma dor aguda, mas distante, em sua mão esquerda. Sua boca estava seca e tinha gosto de ferro. Ela provavelmente mordera a língua na queda.

Alguém a segurava e ela achou que reconhecia a voz que a chamava. Olhou para o rosto preocupado de Wulfric que pairava sobre o seu e começou a retornar para o presente.

– Blitz! Blitz! – o jovem gritava ao dar tapinhas em seu rosto. – Você está bem?

– Nunca estive melhor – ela respondeu com voz fraca.

Percebeu que deveria estar bastante atordoada para que Wulfric pudesse tocá-la sem levar um choque como antes. O rapaz levantou a mão esquerda da garota e ela pôde ouvir um arquejo de Natália, que estava fora de sua visão.

Blitz encarou o novo ferimento que ganhara, erguendo uma de suas sobrancelhas ao perceber que seu dedo médio não mais se encontrava onde deveria. No seu lugar havia um pedaço de osso branco como papel, envolto por nada mais que algumas tiras de carne vermelha e do tecido rasgado de sua luva.

Sentiu o pânico começar a surgir e vagorosamente preencher sua mente quando se deu conta da gravidade do machucado. Wulfric segurou o tecido de sua luva na ponta de seu indicador e começou a tirá-la. Sua mente voltou ao normal.

– Não – ela protestou, mas sua voz saiu na forma de um gemido quase inaudível.

O garoto acabou de remover a luva e Blitz fitou os restos de uma antiga queimadura que cobria toda a sua mão. Sentiu o toque do jovem na sua pele grossa e marcada pelo fogo e desviou os olhos, envergonhada.

Wulfric ou ignorou ou não percebeu a grande cicatriz. A garota apostava na primeira opção. Ele rasgou um pedaço de tecido que ela achava pertencer à roupa de cama da menina que ainda soluçava e começou a improvisar um curativo. Cada toque do tecido na ferida fazia Blitz se encolher de dor. Ela queria gritar e amaldiçoar o garoto, mas mordeu seus lábios e suportou tudo com apenas alguns gemidos e palavrões.

Quando acabou, Wulfric fitou seus olhos com expressão de pesar.

– Seu dedo… – Ele procurou por palavras. – Eu acho que…

– Eu sei – Blitz interrompeu. – Mas não se preocupe… – Ela sorriu ao lhe mostrar a mão direita com apenas seu dedo médio levantado. – Eu tenho outro.

Wulfric riu, balançando a cabeça em desacordo.

– Qual é… Tem uma criança aqui.

Blitz também sorriu.

Um barulho, vindo do outro lado da sala, interrompeu a distração dos jovens.

O wendigo se levantava.

– Você deve estar brincando… – Wulfric murmurou.

Blitz se recuperou, equilibrando-se com certa dificuldade. Cada movimento de seu braço enviava uma mensagem de dor ao seu cérebro que a fazia querer gritar. Sua mente começou a se limpar quando a adrenalina voltou a bombear em suas veias.

– Que filho da puta insistente – sibilou, cuspindo um punhado de sangue no chão de linóleo.

A garota deu um passo à frente, mas parou quando sentiu um puxão em seu vestido. Olhou para trás, encarando Wulfric.

– Blitz… Nós devíamos… Se você me ajudar, talvez a gente consiga fugir. – Ele olhou para a estaca de ferro que ainda prendia a menina ao piso.

Blitz sorriu.

– Eu acho que é preciso mais do que uma gótica magrela pra arrancar isso do chão, Wulfric. E além disso, o que faríamos depois de sair daqui? Aquela coisa não vai parar de nos perseguir, a menina está ferida e nós sequer temos aquela sua lambreta para podermos fugir.

– É uma vespa… – o garoto corrigiu, fazendo Blitz sorrir de novo. Ele hesitou por um segundo, mas soltou o vestido da jovem.

Blitz encarou o wendigo que já se punha sobre as quatro patas, preparando-se para atacar. Apontou seu indicador direito para o monstro e fez o primeiro movimento, disparando uma rajada de eletricidade e correndo para o lado para tirar sua atenção de Wulfric e Natália.

O wendigo recebeu a descarga com suas galhadas sem se abalar e investiu sobre Blitz, que desviou ao saltar sobre uma mesa e jogar-se para o lado, ignorando a dor aguda na mão esquerda.

– Isso não vai funcionar! – o garoto gritou. – Tem que ser mais forte!

– Eu já disse: mais forte que isso, só se eu tocá-lo – a jovem falou ao desviar de um soco mal executado da criatura.

Wulfric estalou a língua, frustrado, e começou a olhar ao redor.

– Deve ter outro jeito… – ele parou de falar ao encarar uma grande mancha de mofo na parede, causada por mais uma infiltração. – É isso! – ele exclamou e apontou para o cano de metal na parede oposta que suportava a mangueira de incêndio já corroída pelo tempo. – Blitz! Água!

A jovem olhou para onde o rapaz apontava e não foi preciso outra palavra para entender seu plano.

Blitz disparou outra descarga para manter o wendigo ocupado e correu para a mangueira. Colocou sua mão boa na válvula circular e gemeu ao tentar girá-la com toda a sua força. O metal enferrujado nem mesmo rangeu.

– Está emperrada! – ela gritou.

Wulfric se levantou, já com a intenção de ajudá-la, mas Natália o segurou, temendo ser abandonada por ele.

– Você não consegue fazer algo com sua magia? – Wulfric gritou de volta.

A mão de Blitz soltou-se da válvula. Sua mente viajou por um instante.

Houve uma época em que ela poderia ter cortado aquele cano como se fosse feito de manteiga. Uma época onde ela poderia ter libertado aquela menina sem dificuldade alguma. Uma época onde ela atravessaria o peito daquela criatura com suas mãos nuas e ele queimaria até somente cinzas restarem. Mas aquela época havia passado, ela gostasse ou não.

Sua mente voltou ao presente, mas sua angustia continuou por mais um segundo.

– Eu deveria conseguir, Wulfric – ela murmurou baixinho. – Eu realmente deveria…

– O quê? – o jovem perguntou ao mesmo tempo que o wendigo urrava.

Blitz balançou a cabeça, deixando o passado de lado.

– Nada – ela disse. – Eu tive uma ideia.

A garota se afastou alguns metros do cano de metal, colocando-se na linha de ataque do wendigo.

– Ei, Bambi! – gritou ao dar as costas para o monstro. – Aqui! – Ela apontou para suas costas com o polegar, como se demarcasse um alvo.

A criatura urrou ao aceitar a provocação. O monstro colocou-se em suas quatro patas e mostrou suas presas, saliva escorrendo de sua boca escancarada. E então investiu, tão rápido como podia, as galhadas apontadas para as costas da garota.

Blitz girou a cabeça levemente e fitou a fera, calculando a distância entre as duas. Quando pôde sentir o deslocamento de ar causado pela investia do wendigo, correu em direção à parede e saltou, chutando uma junção do cano para se impulsionar para trás. Blitz girou no ar de ponta cabeça, saltando por sobre a criatura ainda em movimento, seu rosto à centímetros das galhadas afiadas.

A garota aterrissou no chão empoeirado, leve como uma folha no outono, enquanto o wendigo acertava parede e canalização como um trem desgovernado.

Um chafariz surgiu do cano destruído, molhando parede, teto e chão. O wendigo removeu seus chifres do cano com um barulho agudo de metal sendo rasgado. Gotas d’água escorriam de seu crânio nu e permeavam seus chifres quando o monstro se virou para a jovem, o pelo hirsuto escuro por causa da umidade.

Blitz não se moveu, apenas observou o caminho que a água percorria ao sair do cano. O líquido escorreu pela parede descascada até o chão, molhando os pés da criatura e deslizou lentamente pelo piso empoeirado até as solas de seu coturno.

O wendigo deu um passo à frente, pisando na poça d’água que agora cobria quase todo o chão. A jovem olhou para trás e sorriu ao notar que Wulfric e Natália ainda estavam em terreno seco.

Blitz abaixou-se, tocando a poça d’água com a mão direita. O líquido frio fez sua pele se arrepiar. A garota canalizou sua mana através de sua mão e uma descarga elétrica percorreu o chão encharcado como serpentes azuis boiando sobre um lago negro.

As centelhas chegaram aos pés do wendigo, mais rápidas e mais poderosas agora que não encontravam tanta resistência. A criatura urrou quando a eletricidade subiu por seu corpo e pareceu paralisar.

Blitz observou o monstro por alguns segundos antes de se virar para Wulfric.

– Parece que funcion–

– Blitz! – o grito do jovem a interrompeu. – Ele desviou a eletricidade para cima!

A garota virou-se imediatamente, encarando as marcas carbonizadas no teto, desenhadas no mesmo padrão dos chifres da criatura. Aquela coisa não era irracional, ela agora tinha certeza. A esperteza e a perseverança daquele monstro quase a faziam sentir respeito por ele. Não pôde evitar de sorrir.

O wendigo deu um passo vagaroso para frente e gemeu ao se mover, demonstrando que sua defesa não havia sido perfeita. Wulfric prendeu a respiração e Natália soluçou mais uma vez. Blitz não se moveu, o sorriso ainda no rosto. Sua eletricidade amplificada pela água podia ter sido insuficiente para matá-lo, mas era capaz de paralisá-lo por alguns segundos.

Isso era tudo de que ela precisava.

A garota tocou a poça d’água, disparando mais uma vez, e o monstro urrou.

– Ele está atordoado! – Wulfric gritou. – Blitz! Fuj–

Mas Blitz não pretendia fugir. A garota se lançou na direção do wendigo, espirrando água para os lados ao pisar sobre o chão encharcado. Parou ao se aproximar do monstro, tão perto que podia sentir o cheiro de carne podre que exalava de sua pele.

O wendigo voltou a si, abaixando a cabeça e encarando Blitz com seus olhos vermelhos. Abriu sua mandíbula com um estralar de ossos. Suas presas ficaram a centímetros do rosto da garota e suas garras quase tocavam seu corpo magro. O cheiro de sangue era repulsivo.

Blitz não se abalou.

Levantou sua mão esquerda, aquela que seu inimigo havia sido habilidoso o suficiente para aleijar, e tocou o peito frio da criatura, encolhendo-se um pouco com uma pontada de dor. Sentiu seu pelo grosso, mesmo através da pele queimada, e a respiração pesada que balançava seus cabelos.

Depois fechou os olhos.

Blitz percorreu seu próprio âmago buscando sua mana mais profunda, mais íntima, mais poderosa e a trouxe para a superfície. Ela reuniu tudo que podia de uma vez e canalizou até sua mão esquerda. Apenas o som de pequenos estalos elétricos vindos de seus braços eram testemunha da energia ali acumulada.

– Você foi um bom oponente – ela sussurrou de forma que apenas a fera pudesse ouvir.

Depois abriu os olhos e liberou tudo.

Um lampejo explodiu de sua mão. Blitz pôde sentir a mana percorrendo seu braço e sua mão numa torrente estrondosa. Sentiu a energia chegar aos seus dedos e se transformar ao deixar seu corpo. Eletricidade assolou o wendigo, rasgando músculos, estourando veias e fervendo seu sangue. Centelhas azuis ricochetearam por toda a sala, acertando móveis, paredes e teto. A água sob seus pés ferveu e vapor flutuou no ar. A jovem ouviu o grito de Natália por apenas um segundo, quando um estalo elétrico ensurdecedor rachou os vidros que ainda restavam no cômodo decrépito.

E o wendigo não se moveu mais.


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