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Os quatro saíram da pequena choupana através de uma porta aos fundos que Blitz nem percebera existir, o que não a deixou surpresa, levando em conta todas as folhas e galhos que a cobriam.

O spriggan caminhava com dificuldades, apoiando-se em sua bengala e em Aura ao mesmo tempo. Pequenas raízes nascidas das solas de seus pés arrebentavam-se toda vez que a criatura dava um passo.

Talvez tenha sido a lentidão com que progrediam pela trilha de folhas secas que fez com que Blitz resolvesse voltar sua atenção para seus arredores com o intuito de não gritar para o spriggan apertar o passo.

Foi nesse momento que entendeu a razão de tantas fadas viverem num bosque neste lado do Véu.

Não parecia mais que estavam em Linsel. As árvores, as plantas e a grama sob seus pés eram… verdes demais. Não o verde escuro e apagado de uma cidade sem sol, visto às vezes em uma erva-daninha que lutava para sobreviver na terra seca de uma rachadura numa calçada de concreto. Aquele era um verde diferente. Claro. Forte. Vivo.

E as outras cores também a surpreendiam. O amarelo das folhas caídas era reluzente e o vermelho das flores plantadas no chão era vívido.

Blitz se lembrou de uma canção de jazz que ela gostava de ouvir às vezes. Uma canção que falava sobre árvores verdes e rosas vermelhas, sobre céus azuis e nuvens brancas, sobre as belas cores do arco-íris. Ela riu consigo mesma. Estava surpresa por encontrar plantas coloridas ali, mas Linsel não possuía um céu azul pintado de nuvens brancas. Não era possível ver o arco-íris na cidade, já que o Véu não permitia a passagem de luz do sol o suficiente para isso.

Aquele não era um mundo maravilhoso como a canção descrevia.

Os pelos da nuca de Blitz se arrepiaram e ela cessou o riso e olhou ao redor. Não demorou muito para perceber que estavam sendo observados e não foi difícil notar alguns dos observadores.

Dois elfos comuns usavam o tronco de uma árvore como esconderijo, mas o ato se tornava inútil toda vez que se inclinavam para o lado ao tentar espiar melhor. A pele branca e as orelhas pontudas também não os deixavam mais discretos aos olhos dela.

Já os elfos da floresta eram mais eficientes, escondendo-se nas copas das árvores e usando sua pele cor-de-cobre como camuflagem nos troncos mais claros. Ainda assim, Blitz encontrou uma dúzia de olhos a espiando a cada passo.

Pixies se mantinham bem ao longe, no fundo da floresta, mas eram ainda menos inconspícuas. Pontos luminosos dançavam na penumbra formada pela mata, iluminando o bosque de vermelho e azul, verde e amarelo, prata e dourado. Era como se dúzias de vagalumes a observassem passar, temerosos demais para se aproximar e curiosos demais para se manter afastados.

Alguns dos elfos, principalmente os mais velhos, não pareciam temer os humanos. Um casal idoso acenou para o spriggan e para Aura da varanda de uma simples cabana construída na parte central de uma árvore. Uma pequena elfa, que não pareceria ter mais que cinco anos, fosse ela uma humana, correu para mostrar sua nova boneca de palha para Aura. A animorfa separou alguns segundos para realmente analisar a boneca. Pareceu apontar seus erros, o que fez a expressão da pequena elfa ficar tristonha, e logo depois deve tê-la incentivado com alguns elogios, pois o rosto da menina se acendeu como uma lâmpada, mostrando um grande sorriso. Aura bagunçou os cabelos já rebeldes da pequena elfa e devolveu a boneca, deixando a menina correr de volta para sua mãe, que não escondia o medo que sentia pelos visitantes.

As reações de outros moradores pelo caminho não esconderam o quanto o spriggan e a animorfa eram populares no Bosque. Vários enfrentaram o medo dos humanos apenas para cumprimentá-los e voltar a se esconder logo depois.

O corredor verde pelo que passavam abriu-se em algo que lembrava um pomar no centro de uma clareira, com árvores variadas espalhadas por toda a região.

– Por Neliel… – o sussurro de Wulfric foi alto o suficiente para chamar a atenção de Blitz.

A garota seguiu seu olhar, esperando encontrar algo que surpreendesse apenas a mente ainda ingênua do rapaz, mas a visão que teve quase a fez chamar por um deus no qual não acreditava.

A cerejeira devia ter sido bela… quando ainda estava viva. Seu tronco forte e tortuoso espalhava galhos irregulares para todas as direções. Suas raízes grossas pareciam indecisas quanto a ficar no solo ou colocar-se para fora ao ar fresco. As poucas pétalas restantes pareciam se esforçar para se manter em seus galhos só para serem sopradas com a mais leve brisa. E as que já desistiram do ato, pintavam o chão ao pé da árvore com um rosa claro que parecia perder seu brilho a cada minuto.

A visão de uma árvore tão bonita naquele estado era algo naturalmente triste, mas o que dava arrepios em Blitz era o formato humano do tronco à sua frente.

O casco grosso da cerejeira dava forma ao rosto aterrorizado de uma jovem mulher. A figura assustada levava as mãos, que se estendiam do tronco como galhos delicados, até seu busto amadeirado. A forma humana continuava até que voltava a se camuflar ao tronco logo abaixo de sua cintura.

Uma dríade.

– Blitz… – A voz de Wulfric tirou a garota do transe em que caíra.

Só então ela percebeu o que o jovem fitava.

A cerejeira não era a única. Mais árvores espalhavam-se pelo início da clareira com formas humanas esculpidas em seus troncos. Expressões de dor e surpresa permeavam os rostos de madeira.

O rapaz apontou para algo e a garota seguiu seu dedo.

O que um dia devia ter sido um belo freixo, jazia no chão da clareira. Sua copa havia sido vasta, mas agora deitava-se no chão, suas folhas já murchas e tingidas de um verde escuro e morto. Seus galhos tortuosos seguiam até seu tronco liso e cinza-claro, jovem demais para ter a casca grossa da espécie. O tronco seguia paralelo ao chão por três metros e então simplesmente deixava de existir. No lugar, uma cratera semiesférica perfeita encontrava-se escavada no chão. Blitz sabia que o freixo um dia se colocou de pé ali. Sabia porque o restante de suas raízes podia ser visto ainda na terra escura no fundo da cratera. A garota se aproximou e analisou a extremidade do tronco que sobrara. A árvore não havia sido cortada ou quebrada. Um formato parabólico destacava-se na base do tronco, como se houvesse sido talhado ali por um artesão experiente. Blitz não encontrou outra forma de descrever a cena: era como se tudo em um raio de um metro da base do freixo, madeira, grama e solo, simplesmente houvesse deixado de existir.

– O que aconteceu aqui? – Wulfric verbalizou a pergunta que já cruzava a mente de Blitz.

– A vingança de Torithen – o spriggan respondeu.

– Quando você disse que ele tinha jurado se vingar do Bosque… Eu não imaginei que seria tão…

– Literal? – Blitz completou.

– Bem… Sim.

– Torithen era tão gentil… – o spriggan voltou a falar. – É difícil acreditar, quanto mais entender o que o levou a isso.

 Aura pareceu se contorcer diante das palavras do spriggan e o desconforto que Blitz achou ter visto em sua postura foi confirmado pela expressão irritada da animorfa. A elfa não parecia concordar com o Senhor da Floresta.

– Alguém viu como isso aconteceu? – Wulfric perguntou, alienado à reação de Aura.

– Sim, meu jovem.

O spriggan caminhou para uma árvore ali perto.

O salgueiro-chorão ao qual ele se dirigiu era jovem ainda, mas seu tronco era forte e suas folhas vistosas. Os galhos que formavam sua copa mal podiam ser vistos devido a quantidade de ramos que se derrubavam deles, como compridas lágrimas esverdeadas. As folhas eram finas e longas e as flores vermelhas, apesar de poucas, lembravam a ponta do rabo de um gato.

– Willow, minha querida, você ouviu a pergunta do rapaz, certo?

Um rosto jovem e feminino surgiu no tronco da árvore, tomando forma em sua casca grossa e escura. A dríade pareceu tomar coragem antes de deslizar o restante de seu corpo para fora do caule do salgueiro.

– S-sig, nan Makar – o espírito da árvore balbuciou em uma voz fina e chorosa.

– Eu acredito que nossos convidados não falam kaline, minha querida. – As sobrancelhas verde-musgo do spriggan se arquearam ao voltar-se para Blitz e Wulfric. – Ou falam?

Ambos negaram.

A dríade se encolheu um pouco e passou a falar na língua comum em um tom de lamúria:

– P-perdão… Eu não queria…

– Não se preocupe – Wulfric a acalmou com um sorriso. – Você viu o que aconteceu aqui?

O espírito do salgueiro pareceu mais confortável ao ouvir a voz amigável do rapaz e o tom de sua resposta soou mais animado:

– Sig– Ah! Quero dizer, sim. Eu vi.

– Pode nos contar?

Willow fitou o spriggan, como se pedisse permissão e, depois de um aceno do Senhor da Floresta, começou a relatar:

– E-Eu estava dormindo. Todas estávamos. Aconteceu à noite. Sakura me acordou, dizendo que tinha ouvido um grito. Eu pensei que ela tivesse tido um pesadelo ou tivesse ouvido o que outra dríade estivesse ouvindo. Ah! Nós podemos fazer isso, sabia? Eu não sei se você sabia, mas podemos. Os espíritos de árvores antigas conseguem se comunicar uns com os outros através do solo e do vento a grandes distâncias. Mas mesmo dríades jovens como nós às vezes conseguem ouvir o que outras ouvem, principalmente quando sonhamos. Por isso é difícil saber se o que você ouve é real ou não, sabe? Ah! Eu estou me desviando do assunto, perdão…

– Só resuma tudo, tá bom? – Blitz disse, não se preocupando em esconder em seu tom o quanto a voz chorosa da dríade a irritava.

– Bem, eu a convenci de que havia sido apenas um sonho e voltamos a dormir, mas poucos minutos depois fui eu quem ouviu um grito. Eu reconheci a voz de Sakura logo depois. Quando olhei na direção dela, vi uma figura encapuzada segurando algo preso ao peito dela. De primeiro pensei que fosse uma estaca ou um punhal, mas o objeto começou a brilhar. Eu pensei em pedir ajuda, mas então essa coisa brilhou ainda mais e Sakura gritou mais alto. Suas pétalas começaram a cair e seu tronco ficou seco e sem cor. A vida dela parecia estar sendo sugada pela coisa brilhante em seu peito. Depois, essa figura de capuz arrancou essa estaca do peito de Sakura e caminhou até Cenere. – A dríade encarou o freixo pela metade que jazia ali perto. – E então ele fez a mesma coisa, apunhalando ela no peito.

– O que ele estava segurando? – Wulfric interrompeu.

O spriggan voltou-se para Aura.

– Aura, por gentileza…

A animorfa se aproximou, retirando um objeto enrolado em um pedaço de tecido de sua bolsa de couro. Desenrolou o pano e lhes mostrou.

Um cristal, branco-acinzentado como o próprio Véu, destacou-se sobre o tecido pardo. Estava quebrado ao meio e, se inteiro, mediria quase três palmos de Blitz, o que não o faria muito longo, considerando as mãos delicadas da garota. Não tinha mais de dois centímetros de diâmetro e suas pontas eram lapidadas ao ponto de se tornarem perigosamente afiadas. Lembrava a garota um cristal de quartzo que podia ser facilmente encontrado em lojas fajutas de ocultismo.

– O que é isso? – Wulfric indagou, hesitando antes de tocar o cristal.

– Não sabemos – o spriggan respondeu. – E eu devo dizer que não existem muitas coisas que eu desconheça.

– Foram vocês que o quebraram? – Blitz perguntou, cogitando tocar no cristal, mas se decidindo pelo contrário.

Os três integrantes do Povo da Floresta abaixaram suas cabeças. Foi Willow que falou primeiro, seu tom ainda mais lamurioso que antes.

– Nerethen apareceu logo que a figura de capuz apunhalou Cenere. Ele provavelmente ouviu os gritos de minhas irmãs e veio correndo. Quando confrontou o monstro que a atacava, seu capuz caiu e eu pude reconhecer o rosto de Torithen. Nerethen ficou chocado e Torithen usou dessa chance para derrubá-lo.

“Nerethen se levantou e avançou em Torithen, que tentava arrancar o cristal da dríade, mas na confusão, o cristal se quebrou e… – As palavras de Willow morreram ao fitar a cratera no chão da floresta. – Aquilo foi tudo que restou.

A surpresa no rosto de Wulfric transpareceu no mesmo instante e Blitz se perguntou como estaria o dela.

– Quando você diz que isso foi tudo o que restou, você quer dizer que Nerethen… Ele desapareceu?

O spriggan hesitou, mas respondeu:

– Não encontramos restos mortais, se é isso a que você se refere, meu jovem. Pelo que Willow nos contou, houve uma explosão de luz quando o cristal se partiu e… Achamos que Nerethen foi pego nela…

Um momento de silêncio coletivo não ensaiado pairou sobre eles. Blitz o quebrou quando já achava que havia se estendido demais.

– Esse elfo. O mais velho. – Ela virou-se para Willow. – O que ele fez depois?

– Ele ficou muito assustado. Pálido até. Eu não acho que ele soubesse que aquilo ia acontecer, nem que tinha a intenção de matar o próprio irmão. Ele fugiu logo em seguida.

– Pra onde?

– Leste, para o Véu. Vários animais o viram atravessá-lo.

Blitz balançou a cabeça.

– Se ele atravessou o Véu, não podemos fazer nada. Mesmo se Wulfric o seguisse, eu não ia poder ajudar. E ele pode estar em qualquer lugar de Nympharum agora. Não podemos rastreá-lo.

– Net.

Blitz piscou. A voz que a respondera era desconhecida. Ela virou-se para Aura. A animorfa havia dado um passo à frente e sua expressão estava resoluta.

– Como é? – A garota arqueou as sobrancelhas.

– Net. – A elfa voltou a falar na linguagem das fadas e depois se corrigiu: – Não. Muito longe.

O sotaque pesado de Aura era algo a ser notado, mas não foi isso que chamou a atenção de Blitz, mas a própria voz dela. A animorfa era um palmo e meio mais alta que a garota e talvez cinco anos mais velha. Ou pelo menos aparentava essa idade, se animorfos envelhecessem na mesma velocidade que humanos. Seu cabelo era castanho e liso, mas encontrava-se trançado naquele momento. Suas feições eram suaves e sua expressão doce como a de uma criança.

Por isso a voz de Aura surpreendeu Blitz. Era baixa e forte, como a de uma mulher madura que já enfrentara diversos problemas na vida.

E seu olhar não ficava para trás. Penetrante. Inabalável.

Eram duas coisas simples, mas que Blitz era capaz de respeitar.

– Explique-se – a garota finalmente falou.

Aura apenas olhou para o spriggan, que começou a falar em seu lugar:

– Aura investigou o outro lado do Véu. Ela disse que a trilha de Torithen se afasta algumas centenas de jardas, dá uma longa volta e então retorna para este lado, só que em um local bem distante daqui. Ela acha que ele só fez isso para nos despistar.

– Hmm…

– Ela não acredita que ele tenha permanecido em Kalinae. A próxima cidade depois do Véu fica a sete dias daqui por montaria. E Torithen não tinha um cavalo ou um grande-cervo para cavalgar. Na verdade, ele sequer sabe montar. Ela acha que ele usou o Véu para encobrir o fato de que voltou para Linsel.

Blitz pesou aquela teoria e teve de admitir que fazia sentido. Mesmo assim, sua natureza desconfiada era mais forte do que a lógica da elfa.

– Wulfric – Ela encarou o garoto.

– O quê?

– Você consegue confirmar essa informação?

– Como…? – O garoto estreitou os olhos, hesitante.

Blitz apenas tocou a ponta de seu nariz com o indicador.

– O quê?! Por quê?! Eles acabaram de dizer–

– Seria bom ter uma segunda opinião.

Wulfric pareceu querer desaparecer naquele instante.

– Tem certeza? – ele insistiu e seus olhos desviaram por uma fração de segundo para Aura.

Um leve sorriso tocou os lábios de Blitz, quando o motivo da hesitação do garoto ficou claro. Garotos sempre seriam garotos, independente da espécie.

– Você está com vergonha – a garota sussurrou, escondendo a diversão quase sádica que sentia ao ver o rapaz embaraçado.

– Não estou não.

– Está sim. Você não quer mostrar sua transformação meia-boca para o passarinho ali.

– Eu… Qual é, Blitz!

A garota riu.

– Olha… Se te faz sentir melhor, só diga que vai checar a informação, caminhe até a floresta e se transforme onde ninguém pode te ver. Simples.

Wulfric vacilou por um minuto, mas logo assentiu.

– Eu vou verificar se há mais rastros de Torithen – o rapaz falou para Blitz em um volume alto o suficiente para que todos no Bosque escutassem. – Não demoro.

– Espere um pouco, meu jovem – o spriggan disse. – Entendo que vocês prefiram checar a informação, mas você não deve conhecer o outro lado tão bem assim. – E virando-se para Aura. – Minha querida, vá com ele.

 Wulfric estacou, o pé esquerdo ainda parado no ar no meio de um passo.

– Eu… Eu posso ir sozinho. Não preciso de ajuda. De verdade…

– Não seja tímido, meu jovem. Duas cabeças pensam melhor que uma, não é essa a expressão humana? Não se preocupe, Aura não irá lhe atrasar.

O jovem vacilou por um segundo, provavelmente pensando em algum motivo, que fosse ao mesmo tempo plausível e educado para recusar a companhia da animorfa. Depois suspirou e deixou os ombros caírem, derrotado.

– Claro… Por que não?

Blitz assentiu para o garoto e mordeu o interior dos lábios para evitar gargalhar.


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